Eu gostaria de começar este texto me desculpando, porque, fugindo um pouco às minhas próprias regras, este será um desabafo bastante emocional… Também gostaria de dizer que não tenho a intenção de fazer, aqui, um ataque à pessoas ou indivíduos, mas a comportamentos e práticas que são nojentas, na melhor das hipóteses.
Você já ouviu falar de rumba brasileira? Não? Pois é, eu também não tinha, até ontem. E isto é digno de nota, pois nós vivemos no Brasil…
Acontece que, segundo eu soube, uma pessoa, cujo nome não vale a pena revelar, viajou para a Grécia para participar de um evento de culturas ciganas, representando os ciganos do Brasil. Esta pessoa, que, devemos dizer, não é cigana, apresentou a tal rumba brasileira, pelo que entendi, como uma das danças típicas dos ciganos do Brasil.
Bem, meus amigos, vocês sabem o que é essa tal de rumba brasileira? É aquele bate-saias desengonçado, exaustivamente praticado nos eventos temáticos equivocadamente chamados ciganos, que acontecem há algumas décadas, sobretudo nas regiões sul e sudeste do país. Há apenas um problema: esta jamais foi uma dança cigana! Eu desafio qualquer um a percorrer as comunidades, ranchos e abarracamentos deste país, e a encontrar um grupo apenas em que esta dança, este bate-saias seja praticado pelas mulheres, como se vê nesses eventos. Pode ser cigano algo que os ciganos não fazem?
A história dessa dança, aqui denominada “rumba brasileira”, é muito recente, simples, e por isso vale a pena ser contada. Os eventos temáticos, assim chamados ciganos, começaram com a novela Explode Coração, de 1995, que coincidentemente está sendo reexibida pelo canal Viva neste momento. Naquela altura, não havia grupos musicais ciganos conhecidos no Brasil, além do Encanto Cigano (grupo musical encabeçado pelo cigano matchuano Mio Vacite) e do Rorarni, que, pelo que parece, era encabeçado pela romie kalderash Mirian Stanescon e foi fundado exclusivamente para a novela.
Eram conhecidos, então, os Gipsy Kings, um grupo de pop latino que, de fato, tocava algumas rumbas latinas, e era formado por ciganos calé de origem francesa; e o Santa Esmeralda, um grupo não-cigano de origem americana/francesa, que tocava disco com uma batida latina, ligeiramente aflamencada.
Santa Esmeralda e, sobretudo, os Gipsy Kings embalaram quase que exclusivamente os eventos temáticos na primeira década (com uma e outra exceção esparsa, como Alabina). Eles faziam música cigana? Não. Quer dizer, os Gipsy Kings até faziam, nas festas de Sara, em les Saintes Maries de la Mer. Mas sua carreira estava baseada, principalmente, em pop com uma batida “aciganada”. Eles chegaram a regravar algumas músicas bem famosas, como a versão de My Way, do Frank Sinatra, chamada A Mi Manera. Mesmo assim, tirando algumas canções gravadas para a novela Explode Coração, pelos grupos já citados, eram o que de mais próximo se tinha de “música cigana”.
E foi assim que surgiu a “rumba brasileira”, como uma tentativa bem desajeitada de imitar os passos que se via na novela (que, por sua vez, tentavam imitar estilos de dança do Leste Europeu e eram, também, bastante desajeitados), ao som de Gipsy Kings e Santa Esmeralda.
Muita gente, muita gente mesmo pegou carona nessa viagem. O público, desinformado, mas encantado com o mise en scène que se via nesses eventos, não tardou a despertar o interesse para aprender a tal “dança cigana”. E o que havia começado como uma performance artística livre, inspirada pela cultura cigana dos países do Leste Europeu, mas sem nenhuma raiz cultural de fato, tornou-se uma grande oportunidade de negócios…
Diversas pessoas começaram a dar aulas de “dança cigana”, sem nunca haver pisado em uma comunidade tradicional, sem saber nada a respeito da cultura romani além do pouco que viu na novela. E, com o passar dos anos, alguns dos primeiros alunos desses professores do equívoco também se tornaram professores, ajudando a perpetuar, como legítima manifestação artística cultural, algo onírico, completamente inventado pela cabeça de não-ciganos, com base exclusiva em estereótipos da ficção…
Hoje, sem qualquer chance de erro, nós podemos afirmar que o “mundo da dança” é um dos maiores (senão o maior) mananciais de enganos quando o assunto é cultura cigana. Além disso, é um tabu, porque se tornou um ganha-pão lucrativo para muitos indivíduos corruptos e despolitizados, alguns deles de origem cigana de fato, que não se importam com a desinformação que endossam sobre a própria cultura e a própria história, porque estão ganhando (algumas vezes muito) dinheiro.
A própria denominação “rumba brasileira” é problemática, se pararmos para pensar, porque essas danças eram ensinadas nos cursos como “rumbas ciganas”. Não eram, e hoje se sabe disso, então não resta muito a não ser dizer que se trata de uma “rumba brasileira”, como se fosse um autêntico estilo de dança, nascido no Brasil. Bem, de fato nasceu no Brasil. Se é dança ou se não é, deixo isso para que as pessoas com formação em dança julguem. O que posso afirmar, com toda a certeza deste mundo, é que não se trata de dança cigana. E é uma pena, uma verdadeira lástima, que as autoridades políticas sejam desinformadas demais, ou coniventes demais, para se importar em fazer alguma coisa. É uma pena e uma lástima ainda maior o fato de não se poder contar nem com as instituições, como o Sindicato dos Profissionais de Dança e outras entidades análogas, para indicar o que é autêntico e o que não é. Como é típico da cultura política brasileira, as pessoas ascendem em posições nestes órgãos por muitos motivos obscuros, que geralmente nada têm a ver com lastro e competência.
Vocês já pararam para se perguntar onde as pessoas que dizem ensinar “danças ciganas” aprenderam a dançar? Já pararam para se questionar que dança cigana é, por definição, uma dança étnica, e que, portanto, seria muito difícil aprender de maneira confiável sem ter contato com a realidade cultural da etnia?
Onde as pessoas que ensinam a dança das banjaras, ou das ciganas do Iraque aprenderam? Dança cigana do circo? Onde isso foi visto, ou melhor, aprendido?
Eu gostaria de saber quais são as referências, além da necessidade de uma confiança cega, para que as pessoas possam estar certas de estarem sendo ensinadas sobre aquilo pelo que pagaram. Pelo menos, quais são as referências oferecidas, além da ficção, para que as pessoas possam estar seguras de que aquilo que se promete ensiná-las realmente existe!!!
Infelizmente, não há muito o que se possa fazer, a não ser o que estou fazendo aqui: provocar um questionamento; e rezar para que este questionamento chegue às pessoas e as toque, as advirta para o fato de que estão sendo enganadas; estão sendo enganadas e ajudando a perpetuar enganos. Eu conto nos dedos, de apenas uma das mãos, as pessoas que estão ensinando dança cigana e realmente sabem o que estão fazendo…
A situação é muito séria, de onde vejo incorrigível, e eu não tenho nenhuma esperança de que os agentes de toda essa bagunça possam se conscientizar e mudar de direção. Posso apenas diminuir o seu legado, combatê-los informando aos que estão dispostos a ouvir, aos que ainda não perderam a alma para este mercado.
Como já dissemos em outra ocasião, o preconceito contra indivíduos ciganos no Brasil, e consequentemente contra a sua cultura, segue em outra direção. Não a do ódio, mas a de um amor falso, exagerado e antropofágico. O que têm se chamado “cultura cigana” por aqui é tudo, menos cigano. É o poder da ficção gadjé suplantando a comunidade tradicional, toda uma cultura fantasiosa e estereotipada, inventada, que agora, inclusive, está sendo levada para fora do país. E os objetivos por trás disto passam longe, bem longe de uma admiração ingênua, como eu mesmo costumava pensar há alguns anos; há muito dinheiro envolvido, muito poder, muito tráfico de influência e ambição por uma posição de destaque que, certamente, não é dentro da comunidade romani tradicional…
Eu disse no início, e vou repetir agora, me desculpem pelo tom excessivamente emocional. Isto é um desabafo, e também um alerta. Não fará mal, também, lembrar que minha intenção aqui não é atacar pessoas que eu nem conheço, senão pelos estragos que causam. Faz muito tempo, desisti de combater indivíduos. O caso cigano no Brasil se transformou em um monstro de muitas cabeças, semelhante à Hidra de Lérna – quando cortamos uma, nascem duas no lugar.
Tenhamos em mente, porém, que, mesmo não sendo Deuses, nós podemos, juntos, matar monstros. Monstros, como qualquer outro ser vivo, precisam se alimentar para continuar vivendo. Sabendo o que comem, nós podemos matá-los de inanição. Então, se você realmente ama e admira a cultura romani, pare de alimentar os monstros que a parasitam. Isto está nas suas mãos!