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O projeto Romani Dromá nasceu em 2013, sob circunstâncias que valem a pena ser contadas.

Em minhas incursões na internet, perdi as contas de quantas vezes me deparei com distorções e falsas informações acerca da assim chamada cultura cigana, que considero o meu legado ancestral. A cultura cigana é invisível, embora, a seu respeito, a ficção já tenha produzido toda a sorte de estereótipos e preconceito. Os indivíduos que pertencem a esta cultura (porque a cultura não pertence a ninguém), não possuem voz alguma, de maneira que, durante séculos, tudo o que foi escrito a nosso respeito veio de mãos estrangeiras, não-ciganas. A maior parte do que se pensa ser “tradição cigana” no mundo gadjé (não-cigano) não passa de invenção criativa – e muitas vezes oportunista – de pessoas que não têm nenhuma real relação conosco.

Jovem e de cabeça quente, pode-se imaginar quantas vezes acabei me envolvendo em embates com pessoas que se aproveitam da liberdade de expressão que a Internet proporciona para divulgar informações falsas sobre os costumes e tradições do meu povo. Especialmente nos nichos ditos “esotéricos” e “espiritualistas”, uma forma bastante particular de exploração cultural.

O Brasil é um país pluricultural, em que povos de diversas origens, com diversas identidades culturais, encontraram um refúgio para viver em paz. Com tanta miscigenação, os fenótipos se misturam pelas ruas das cidades, e é muito fácil para indivíduos de qualquer parte do mundo misturarem-se à multidão. Em virtude disso, talvez, sempre houve bastante espaço para a diversidade religiosa, fato que, em si mesmo, é uma coisa boa… Mas que, infelizmente, também abre muitas brechas para a proliferação de charlatães e aproveitadores.

Muito bem, um desses embates envolveu uma figura mistificadora e oportunista, cuja alcunha não vem ao caso citar, mas vinha ganhando notoriedade no Rio de Janeiro, inclusive escrevendo livros em que comercializava toda a sorte de invencionices e absurdos acerca dos costumes romani. Este embate acabou se transformando em um processo judicial.

Ainda me lembro do dia em que me arrumava para ir à faculdade quando o telefone de casa tocou e, do outro lado, havia um inspetor da Delegacia de Crimes Virtuais. Ele me fez perguntas enigmáticas a respeito de injúrias que eu teria cometido contra alguém, cujo nome nunca havia ouvido antes (por que essas pessoas sempre atuam sob pseudônimos?). Na ocasião, eu pensei que se tratava de um trote e não dei atenção. Cerca de um ano depois, porém, recebi um oficial de justiça com a citação e a inicial do processo para eu assinar.

Quase morri de rir quando terminei de ler a inicial do processo, escrita pelo advogado dessa pessoa. Contudo, imediatamente após à crise de riso, sobreveio uma sincera preocupação… Não pelo processo, exatamente, mas pelo que estava escrito na petição que o advogado escreveu para o juiz. Eu era acusado, entre outras coisas, de praticar “xenofobia religiosa”.

Fiquei bastante assustado com o fato de um advogado, uma pessoa instruída, com formação superior, não conseguir, aparentemente, distinguir etnia de religião. Era isso ou a pessoa que escreveu aquela petição não sabia que os “ciganos” se tratavam de um povo, um grupo étnico, não um grupo religioso. Essa é a informação fundamental, a primeira coisa que há para saber sobre os rhomá (ciganos).

Acho que foi neste momento que a minha ficha caiu. Eu esperava esse tipo de coisa dos ignorantes que comentam em sites de notícias, gente que, em geral, passa a vida no senso comum. De repente, me deparei com a realidade visceral de que, aqui no Brasil, a maior parte das pessoas nos entende como um segmento religioso, ou pior, um “estilo de vida”.

Por que isso? É difícil citar uma razão só. Em primeiro lugar, uma pesquisa rápida no Google revela o quanto é difícil encontrar informações consistentes sobre a etnia romani. A quase totalidade dos sites e blogs faz apenas um copy/paste de conjecturas místicas, na melhor das hipóteses fantasiosas, e o pouco que existe de informação útil está disperso, fragmentado, mal escrito ou noutras línguas, o que torna o trabalho de quem está sinceramente interessado em pesquisar e aprender sobre o povo rhomá uma verdadeira prova de boa vontade e persistência.

Foram tantos anos combatendo impostores, desmentindo falácias, me indispondo com pessoas ignorantes de segmentos religiosos e do mundo da dança, para não falar dos indivíduos romani, que, é lógico, conhecem a própria cultura, mas compactuam com delírios e mentiras porque isso lhes dá retorno financeiro… É o chamado “fogo amigo”. Sempre me pareceu paradoxal como o Brasil, por um lado, pode ser entendido como o paraíso dos rhomá, que aqui encontram aceitação e até, de certa forma, admiração; por outro lado, o quanto essa suposta aceitação também não pode ser entendida como a outra face do preconceito – “aceitamos vocês, desde que sejam o que sonhamos que eram”. Eu me peguei diante de uma hidra, um monstro que, para cada cabeça cortada, duas novas surgem no mesmo lugar.

Durante séculos, meu povo cultivou o fechamento como principal estratégia de sobrevivência. “Quanto menos souberem de nós, melhor”. Se os gadjé criavam suas lendas a nosso respeito, tanto melhor. Muitas vezes encontrou-se uma maneira de tirar proveito disso, e, talvez, essa estratégia tenha sido o que nos permitiu chegar até aqui.

Não tenho dúvidas, entretanto, de que esta mesma estratégia favoreceu o surgimento da maioria dessas ideias equivocadas, que, perpetuadas e fortalecidas, se tornaram estereótipos, grilhões ideológicos. No mundo de hoje, com sua configuração global em que identidades étnicas minoritárias como a nossa vão, cada vez mais, se dissolvendo, penso que, se quisermos sobreviver, precisamos falar, precisamos expor as verdades sobre nós.

Foi assim que tomei uma decisão, em dezembro de 2013 – levaria a cabo uma profunda pesquisa e reuniria material, redigindo textos curtos, concisos e com a maior clareza possível, abrangendo os principais aspectos da cultura romani, sobretudo aqueles sobre os quais as maiores bobagens são ditas e escritas, para disponibilizar gratuitamente na Internet. Seriam noções antropológicas básicas, origem, história e costumes – tudo resumido, simplificado, reunido em um só lugar, com muitas referências de pesquisa e acessível a qualquer um que tenha um computador ou smartphone.

É uma iniciativa ousada, eu sei, um pouco dispendiosa também, e que ainda hoje, quatro anos depois de pensada, não encontra nenhum paralelo. Havia, há alguns anos, um site italiano, mantido por um jornalista não-cigano, com muita informação, principalmente sobre os sinti da Itália, mas infelizmente ele saiu do ar por falta de apoio. Esta, então, são as minhas gotas para apagar o incêndio na floresta; a minha contribuição individual, que eu entrego como doação, em nome do presente e, principalmente, do futuro da minha gente.

Aprendi que não adianta combater pessoas. Falar de indivíduos é lhes dar visibilidade. Não adianta, também, falar do errado e não dizer o que é certo. É preciso atacar a raiz do problema, que, em meu entendimento, é a desinformação. Pessoas informadas não serão tão facilmente enganadas.

Finalizando a história, eu venci aquele processo, já fazem dois anos. A sentença do desembargador, que achei particularmente brilhante, foi compartilhada pública e orgulhosamente em minhas redes sociais. O projeto Romani Dromá, no entanto, passou um bom tempo engavetado, semi terminado graças à correria da vida; mas, como diz o ditado, antes tarde do que nunca, e aqui eu dou início ao pagamento da minha promessa.

Encerro com a grande lição, que levo para a vida – combate-se as trevas com luz, a ignorância com conhecimento, a mentira com verdade.