Resenha: “Qualquer Chão Leva ao Céu”

qualquer chão leva ao ceu

Faz algum tempo que a amiga Cris Penedo resolveu me dar um presente fora de ocasião – essas coisas que vêm da alma – e me apresentou à escritora Cristina da Costa Pereira, por quem eu já nutria profunda admiração há muitos anos. E Cristina, como o doce de ser humano que é, também me presenteou, já em nosso primeiro encontro, com um exemplar de seu último trabalho: Qualquer Chão Leva ao Céu, a história do menino e do cigano.

Como todo bom leitor aficionado, eu tenho a minha pilha ao lado da cama (risos). Mas, recentemente, consegui colocar a leitura em dia e finalmente peguei o livro de Cristina para ler. A princípio, timidamente, como acontece com qualquer nova relação. Mas a fluidez da escrita, aliada à leveza da narrativa, foi me absorvendo num torvelinho de carência, desejo e necessidade, de maneira tal que eu, um leitor vagaroso, devorei o livro inteiro em apaixonada volúpia, no curso de apenas três dias.

Qualquer Chão Leva ao Céu não é o estilo de livro que estou acostumado a ler (aquelas sombrias ficções de horror). É um livro leve, voltado para o público jovem, chega mesmo a ser pueril. Mas Cristina nos pega de jeito ao fazer de Jorge, um menino de rua, o personagem principal. E em suas idas e vindas pelas tortuosas estradas da vida, ele se depara com Latsi, ou Euclides, um cigano desgarrado de seu povo, atormentado pela lembrança da esposa e do filho, que morreram em um trágico desastre de automóvel. Devagar, bem ao modo das irredutíveis fiandeiras do destino, Latsi e Jorge percebem que as tramas de suas vidas, um cigano e um gajãozinho, estão irremediavelmente ligadas.

A maneira como Cristina constrói o personagem cigano, ou melhor, o universo cigano é, para mim, o ponto alto do livro. Talvez por conta de seus mais de 25 anos de pesquisa e estudos junto aos nossos, ela, uma gadji (não-cigana), conseguiu mostrar os ciganos de forma realista e visceral. Não apenas no que diz respeito aos artefatos, os ritos culturais, mas também – e principalmente – no que diz respeito ao sentir e ao pensar romani. Isso, o sentir e o pensar, é justamente a coisa que eu JAMAIS vi um gadjo (não-cigano) admirador de nossa cultura conseguir entender… Até agora. Porque Cristina, em sua prosa que beira mesmo a poesia, conseguiu o impossível – mergulhar na alma cigana, nadar em seus mistérios.

Os ciganos representados no livro são do grupo Rom, com todas as suas características e peculiaridades culturais. Mas a alma que transborda deles, essa essência tão familiar e completa, é a intercessão que existe entre todos nós, e Cristina, em sua delicada sensibilidade, foi capaz de enxergar de forma surpreendente. Tanto que em alguns momentos, companheiro de Latsi, senti o coração apertado de saudade.

Recomendo para todos os admiradores e interessados em conhecer um pouco mais da milenar cultura romani. Mais do que sobre a cultura romani, no entanto, este é um livro sobre alteridade… E sobre os altos muros que nos separam.

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