Considerações Sobre o “Etnocídio” Cigano

Bem, amigos, preparem-se que lá vem livro! (risos) Agradeço desde já aos que tiverem coragem e disposição para ler até o final, ok?
Estou lendo um livro muito bom sobre ciganos, que reproduz, porém, uma maneira de pensar muito própria da década de 70 (década em que foi publicado o livro que estou lendo) e que ainda encontra ecos nos dias de hoje. Transcrevo um trecho, abaixo, que sintetiza bem a posição defendida pelo autor:

“Os ciganos são como os Peles-Vermelhas, os Bascos, os Mongóis, e os Judeus, um dos grupos humanos mais misteriosos e, como tal mais perseguidos. São também alvo do maior ‘etnocídio pela absorção’ dos últimos tempos, somente comparável ao que foi (e continua a ser) levado a cabo contra os Peles-Vermelhas. Essa tentativa de absorção não é, afinal, mais que um entre os múltiplos signos que nos avisam da aproximação do ‘fim dos tempos’ ― do ‘óbito’ da espiritualidade, do começo de uma verdadeira ‘ditadura da História’, com todas as conotações geo-políticas e espaço-vitais que tal tempo disfarça ― do término da Era de Kali, a da Dissolução. O verdadeiro cigano, o nómada, tende a desaparecer, e com ele toda a Tradição, todo um povo que sempre recusou a ‘identidade cultural’ tipo Nações Unidas que, hoje, lhe pretendem impor. Este livro é o apelo do autor a todos os Homens, entendendo por este termo todos aqueles que não querem deixar-se destruir ― e aos Ciganos que querem manter-se fiéis à sua Tradição.” (O Testamento Mágico dos Ciganos, contracapa)
No geral, o livro é, como já disse, muito bom, mas eu gostaria de chamar a atenção para esse entendimento particular de etnocídio que ele nos apresenta. Em outro trecho do livro, o autor diz: “[…] E convém que façamos aqui uma distinção, que deverá ficar bem nítida, entre este verdadeiro cigano e a grande maioria dos ciganos actuais, ou seja, entre o cigano tradicional e o moderno cigano ‘progressista’.” (p. 11) Ou seja, para o autor, verdadeiro cigano é aquele das antigas caravanas, nômade por excelência, alvo de perseguições cruéis, um pária social. E há um enobrecimento nítido dessa condição, que fica ainda mais claro quando, para o autor, o cigano “assimilado”, sedentário, portador de direitos humanos declarados pela ONU, deixa de ser um “verdadeiro cigano”.
Acho que cabe aqui uma reflexão. Aliás, algumas reflexões. A primeira delas: o que faz um cigano “mais” cigano ou “menos”cigano? Será que algum critério pode ser estabelecido de maneira absoluta a este respeito? Eu acho que não. Ser cigano é, até onde eu compreendo, pertencer a um grupo étnico, a uma linhagem que passa por descendência e hereditariedade, não uma condição assumida, que paira num céu de abstração e pode ser arrematada por qualquer pessoa, a qualquer tempo. Para ficar mais claro, não consigo ver um cigano deixando de ser cigano em qualquer circunstância. Pois se adotarmos o paradigma inverso, por exemplo, só poderemos considerar cigano aquele que comer sarmá todo dia! Comeu sushi no fim de semana, já era!
Outro ponto, creio, bastante importante, é a concepção de liberdade que normalmente o gadjô tem. Para os gadjé, o cigano é uma criatura completamente livre porque está fora do sistema social em que a comunidade gadjikane (não-cigana) como um todo se encontra inserida. Mas, ao pensar assim, ele se esquece que essa é uma liberdade relativa. Se de um lado o cigano está fora de um contexto sócio-cultural gadjô, de outro ele está absolutamente imerso em um contexto sócio-cultural romani, ainda mais rígido e, muitas vezes, mais opressor que o não-cigano. Desse modo, essa coisa, muito comum no discurso dos admiradores dos ciganos, de família, fraternidade, etc., é linda, realmente, mas pode ser muito sufocante também. Uma espécie de prisão que os não-ciganos há muito esqueceram como é, pois sua cultura mudou.
É claro que não estou querendo sentar o pau na minha própria gente aqui. Não é isso. Estou apenas oferecendo um outro olhar. Estou tentando mostrar que, como diz o velho jargão, a grama do vizinho parece sempre mais verde do que é.
E como último ponto, gostaria de voltar ao que disse mais em cima, quando falei que a cultura gadjikane mudou.O cigano é um povo complicado. Complicado porque sofre de um grave problema de identidade. É como se a identidade do cigano estivesse na cultura, em costumes que, uma vez perdidos, levam junto a própria “ciganidade” do indivíduo. O problema desse tipo de compreensão é que a cultura, por ser uma coisa viva, muda, naturalmente. Não é uma coisa inerte, estática. E muitos ciganos acabam num torturante processo de luta contra o ciclo natural das coisas, tentando manter a tradição intacta, intocada pela passagem do tempo e das gerações.
Cabe aqui outra pergunta: o quanto do que julgamos “tradição cigana” é realmente cigano? Pra ficar melhor ainda, o quanto do que pensamos ser uma tradição “tão nossa” não foi resultado de trocas e empréstimos de culturas não ciganas em tempos passados? Só para citar um exemplo bastante famoso, as slavas e as pomanas (rito fúnebre) encontram origem numa cultura não-cigana, os antigos eslavos, com pouquíssimas diferenças do que hoje se apresenta como tradição romani autêntica!
Não sou, nem quero ser o dono da verdade, mas algo que aprendi com as ciências humanas foi que seu maior legado para a humanidade está justamente na possibilidade de ver uma mesma coisa sob várias e diferentes perspectivas. E esta é a perspectiva que eu, humildemente, proponho. Ora, o autor traça uma comparação entre ciganos e judeus. Pois os judeus são um exemplo perfeito de povo que soube se unir e penetrar na sociedade gadjikane sem perder as raízes.
Esse é um questionamento importante: será que no mundo de hoje, quando a humanidade já passou a marca dos 7 bilhões de indivíduos, existe espaço para um povo sem lugar nenhum, que se coloca à margem de todos os lugares? Um povo que nasce numa terra e passa a vida toda se considerando estrangeiro na própria terra em que nasceu? Um povo que se condena a não ter os mesmos benefícios que esta terra oferece para todos os seus filhos? Será que há sabedoria nisso?
Se o lado ruim da globalização é o risco (real) de que aconteça uma homogeneização generalizada dos povos, o lado bom (que também existe) me parece ser proporcionar a povos distintos algo de comum em uma convivência pacífica compartilhada. E eu acho, só acho, que nesse aspecto nós, ciganos, podemos perfeitamente dividir o mundo com os gadjé, aceitar as suas leis e a sua estrutura de base, já que nunca tivemos – e nem quisemos ter – um país para fazer do nosso jeito, mas, a exemplo dos judeus, nos manter unidos em torno de nossa própria identidade cultural, com tudo o que ela representa. Buscar resgatar a nossa história, aprendendo a valorizá-la e ensinando isso aos nossos jovens, sem, contudo, deixar de perceber que a cultura muda, isso é inevitável, e que os jovens têm o direito de experimentar a vida ao seu próprio modo.
Afinal, não há o que temer. Se a árvore for forte, o fruto não cairá longe do pé.

2 comentários em “Considerações Sobre o “Etnocídio” Cigano

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