Antes de qualquer coisa, cabem aqui duas explicações. A primeira diz respeito à opção de colocar este tópico como um subitem do tema religião. Ora, ritos de passagem existem em todas as sociedades humanas e não são propriamente religiosos, apesar da nomenclatura “ritos”. Tratam-se de eventos sociais que, embora possam ter algum aspecto religioso, têm como foco e finalidade principal marcar de maneira solene mudanças significativas na vida dos indivíduos. Estas mudanças, por sua vez, também produzem mudanças na sociedade em questão, pela necessidade de readequação ao novo papel social que os indivíduos assumem a partir delas.
Rito é, na verdade, qualquer ato realizado de maneira repetida e metódica, podendo ser religioso ou não. Quando alguém conclui a faculdade, por exemplo, podemos dizer que a solenidade de formatura é um rito. Comemorar nosso aniversário todos os anos é uma espécie de rito também, e um rito de passagem, diga-se.
Ocorre que as pessoas, em geral, tendem a pensar nos ritos de passagem romani como verdadeiras cerimônias espirituais, algumas vezes iniciáticas, como ocorre com o batismo. Quer dizer, sob certo ponto de vista, a formatura é uma espécie de rito iniciático. O indivíduo está iniciando uma carreira naquele momento, não é verdade? Isso não significa que esta seja uma iniciação religiosa, uma experiência mística, por mais que o indivíduo em questão seja, por exemplo, católico, e peça para rezar uma missa em ação de graças pela sua formatura na paróquia da cidade. Espero que a analogia tenha deixado clara a relação entre as coisas.
Optamos, assim, por introduzir este tópico dentro do tema religião. Não porque seja sobre religião, de fato, na verdade tudo isto estaria muito melhor representado dentro do tema Costumes e Tradições Romani – que, por sinal, é o título da maioria das palestras que dou sobre história e cultura romani. É justamente porque NÃO se trata de religião que decidimos tratá-lo aqui, para desmitificar, de uma vez por todas, este mal-entendido.
A segunda explicação diz respeito ao fato de que não vamos tratar cada um dos principais ritos de passagem romani – nascimento, casamento e morte – isoladamente. Sabemos que é assim que este tema costuma ser tratado na maioria das publicações, mas esse costume, em nosso entendimento, leva a um terrível vício de interpretação – a padronização cultural, que estamos nos esforçando para evitar aqui desde o começo.
Pela nossa experiência, quando falamos em nascimento cigano, a primeira coisa em que as pessoas não-ciganas pensam é um banho feito com ouro em um tacho de cobre. Quando falamos em casamento cigano, um verdadeiro frisson toma conta da mente dos gadjé, e a primeira imagem que surge é a de um ritual com pão e uma vela no meio, em que cortes são feitos nos pulsos dos noivos e taças de cristal são quebradas. Isto para não falar da famigerada prova de virgindade… Finalmente, quando falamos em funeral cigano, todo não-cigano que já leu ao menos uma revista sobre o assunto logo imagina o misterioso ritual da pomana, sobre o qual quase nenhum detalhe pode ser escrito.
Não que essas informações sejam falsas, não são. O problema é determinar de quais rhomá se está falando, porque o que não se pode fazer, de maneira nenhuma, é dar a falsa impressão de estar se falando de todos.
A imensa maioria dos textos que abordam esses ritos de passagem foi escrita por rhomá de origem rom, principalmente kalderashes, lovaris e matchuaias. A parte que não foi escrita por rhomá com essas origens foi reproduzida por pessoas não-ciganas, no mais das vezes curiosos sem qualquer formação antropológica, que usaram os textos ou falas desses rhomá como referência. Então é justo que tais textos descrevam, algumas vezes bastante minuciosamente, como são os ritos de passagem tradicionais desses subgrupos Rom; e é bem verdade que, acerca deles, já existe uma boa quantidade de material escrito.
O que esses materiais quase nunca trazem é a informação de que esses ritos de passagem são tradicionais, mas dos rhomá do grupo Rom; para ser ainda mais específico, dos rhomá do grupo rom de determinado subgrupo, de determinada região, que, por sua vez, legaram esses costumes aos seus descendentes em outras partes do mundo. O resultado é a falsa impressão de que todos os rhomá, em todas as partes do mundo, casam-se, batizam seus filhos e são enterrados da mesma exata maneira.
Será que os nawar da Jordânia celebram slavas e fazem pomanas? Será que os calé de Sevilha recebem cortes do patriarca da família nos pulsos quando se casam? Será que os romanichal dão o banho de ouro em suas crianças?
A resposta certamente é não. Então, se quiséssemos abordar correta e precisamente todos os ritos de passagem rhomá, seria necessário um capítulo para cada um, quiçá um livro inteiro, porque cada grupo, cada subgrupo, algumas vezes o mesmo subgrupo vivendo em regiões distintas, têm ritos de passagem, costumes e tradições diferentes.
Entre os sinti italianos, por exemplo, o casamento tradicionalmente se dá mediante uma fuga do casal. Esta fuga pode ser apenas encenada, com a anuência e conhecimento prévio das famílias dos noivos, ou ser efetivamente uma fuga. Seja como for, o casal desaparece da comunidade por um período mínimo de sete dias, ao fim dos quais eles podem voltar. Serão, então, considerados casados pela comunidade.
Já os casamentos romanichal, com suas noivas em vestidos muito extravagantes, se tornaram famosos no mundo inteiro graças ao programa de TV Meu Grande Casamento Cigano, originalmente exibido pelo canal TLC. Eu me recordo do quanto de estranheza o programa suscitou nas mentes decepcionadas de pessoas não-ciganas no Brasil, muito acostumadas aos relatos de abiev, os suntuosos e elegantes cerimoniais de casamento típicos do grupo Rom.
Também no que diz respeito aos ritos fúnebres, muitas são as diferenças de costumes entre os grupos e subgrupos. Os rhomá do grupo Rom, geralmente católicos ortodoxos, celebram a morte de alguém conforme os preceitos do catolicismo ortodoxo. Para além disso, fazem a pomana, que compreende um grande jantar em memória do falecido, em que acontecem um sem-número de observações rituais e é expressamente proibida a presença de não-ciganos (salvo raríssimas exceções).
A pomana, contudo, tem origem eslava, assim como as slavas, festas religiosas em homenagem aos santos padroeiros e de devoção pessoal ou familiar, que, inclusive, são realizadas até hoje por não-ciganos na Sérvia. Apenas os rhomá do grupo Rom fazem a pomana e celebram slavas. Os sinti, por exemplo, são adeptos da cremação, ao contrário dos rom, que, em alguns casos, chegam a construir aposentos completos nos túmulos, com todos os pertences do falecido. Entre os sinti, é costume queimar também os pertences do morto, e, no caso dos que ainda vivem em nomadismo (cada vez mais raros), a sua barraca inteira.
Como podemos ver, os costumes variam bastante. Os rhomá são um povo extremamente heterogêneo, que têm como principal característica uma língua e uma cultura que são patrimônios vivos, e, como tudo o que vive, em constante modificação. Exatamente por essa razão, são bastante difíceis de imitar… Isto é, sem acabar caindo numa caricatura burlesca.
De cada lugar, de cada povo que conheceram, os rhomá levaram muito consigo e deixaram algo de si. Assim como os rhomá do grupo Rom foram fortemente influenciados pela cultura e costumes do leste europeu, os rhomá do grupo Sinti foram influenciados pela cultura dos Bálcãs e os rhomá do grupo Calon, pelos judeus e mouros com quem conviveram estreitamente na península ibérica. O resultado disto não poderia ser diferente de uma imensa diversidade cultural dentro da própria etnia, de maneira que se pode, como já dissemos antes, falar, acertadamente, em culturas romani, no plural.
Onde queremos chegar com tudo isso? A resposta talvez gere alguma antipatia, o que não a torna menos necessária… Nós não ignoramos o quanto o mundo ocidental moderno, em que viviam muitas identidades étnicas que foram sendo gradativamente dissolvidas no processo globalizador, se tornou um feroz consumidor de culturas lidas como exóticas. Também não ignoramos o quanto a capitalismo é atroz em sua fome insaciável por lucro, que transforma todas as coisas em produto, ainda que as descaracterizando no processo. Sabemos que a cultura rhomá, este ente abstrato, constitui-se principalmente de indivíduos e indivíduos, ao contrário de culturas e povos, têm caráter. Alguns indivíduos rhomá, no afã do lucro, lamentavelmente têm tornado sua própria cultura um produto, vendendo para consumidores gadjé, ávidos por uma identidade qualquer, ritos de passagem genéricos com um suposto – e falso – selo de tradição e autenticidade.
Ora, quem já não ouviu que “fulano” ou “beltrana” é um “barô” ou uma “shuvani” que realiza batismos ou casamentos ciganos? É surpreendentemente fácil encontrar essas ofertas, desde jornais e revistas esotéricas até lojas de artigos religiosos e instituições holísticas. No mais das vezes, a pessoa que anuncia esses serviços é alguém que se faz passar pelo que não é; um falsário, enganador. Mas, algumas vezes, são realmente pessoas de origem romani. Isso existe e a tentativa de negar seria como tapar o sol com a peneira.
Faço o seguinte convite à reflexão e que cada um decida segundo a sua própria consciência – faz sentido um “casamento cigano” para um casal gadjé? Esse casal se casará segundo os costumes de quais ciganos? Independente da resposta à última pergunta, seriam esses costumes, de alguma maneira, familiares ao casal? Por que alguém escolheria se casar segundo os costumes de uma comunidade que sempre o verá como estranho, forasteiro?
Daí alguém poderá dizer que é uma questão de crença e escolha pessoal… E essa não poderia ser uma resposta menos rhomá!
Os rhomá, como a maioria dos povos tradicionais, têm um pensamento comunitário muito forte, que é, essencialmente, a base das suas organizações familiares. As decisões são tomadas coletivamente. O bem individual jamais é colocado acima do bem comum, de maneira que casamentos arranjados, coisa que escandaliza profundamente a mentalidade ocidental, seguem sendo bastante frequentes.
Então, perguntamos – por que alguém tomaria a decisão particular de se casar segundo os costumes de um povo que não conhece e cujas tradições desencorajam a individualidade, sobretudo nas decisões relativas ao casamento? Principalmente quando já se sabe que tais costumes nada têm de religiosos, pois a parte que diz respeito à religião é feita segundo as liturgias próprias da religião adotada pela família (cristianismo, islamismo, umbanda, candomblé, etc.)?
Faz sentido que se case como um rhom aquele que vive como um rhom. Da mesma maneira, faz sentido que seja batizada à maneira rhomá, seja essa maneira qual for, a criança que nasce rhomie; e faz sentido que sejam observados os tradicionais ritos fúnebres rhomá para aquele que morreu como rhom. Em resumo, faz sentido que a sua vida seja vivida e suas passagens importantes celebradas ao seu próprio modo, segundo a sua própria identidade.
Que os povos e culturas têm muito a aprender uns com os outros não vamos discutir. De fato os povos e culturas têm trocado conhecimentos e experiências desde a aurora humana, e isso é formidável. A cultura rhomá tem muito a ensinar, assim como, de onde eu vejo, certamente tem muito a aprender. Muitos aspectos de suas tradições podem ser aprendidos, quiçá reinterpretados por outras culturas, de outros povos, assim como os próprios rhomá fizeram, reinterpretando aspectos de outras culturas ao longo de sua história.
Esses aprendizados e reinterpretações, porém, jamais serão romani, tanto quanto as tradições rhomá, sejam elas releituras de outros costumes ou não, jamais serão gadjé. A este princípio social básico chamamos alteridade, que nada mais é do que a própria condição do que é outro, irremediavelmente distinto em sua própria natureza e identidade.