A incorporação de espíritos é um fenômeno psíquico, um transe, uma espécie de êxtase religioso. É claro que ela não é exclusividade de nenhum culto ou religião em particular, existe nas mais variadas formas religiosas ao redor do mundo; mas em nenhuma delas de forma tão popular quanto se tornou na Umbanda, que, inclusive, tem como um de seus lemas mais emblemáticos “a incorporação do espírito para a prática da caridade”.
A Umbanda, aliás, enquanto manifestação religiosa tipicamente brasileira, é, ao meu ver, mais que um movimento religioso, é um fenômeno cultural. Em suas giras (sessões) periódicas, quase sempre abertas a todos, são invocados e celebrados espíritos oriundos das mais diversas origens, todas elas importantes para a formação da cultura e da identidade brasileira – índios, negros, europeus e – por que não? – ciganos.
Quando falamos sobre os calé, vimos que há presença cigana no Brasil desde os tempos coloniais. Pesquisas históricas recentes apontam para o fato de que muitas famílias de origem calé fizeram fortuna com o comércio de escravos, notadamente no Rio de Janeiro. Após a instituição da Lei Eusébio de Queirós, em 1850, que tornou o tráfico negreiro uma prática definitivamente ilícita, muitas dessas famílias migraram para a área da justiça, construindo verdadeira tradição na carreira de meirinhos (uma espécie de oficiais de justiça) na cidade do Rio de Janeiro. Remanescentes dessas famílias vivem até hoje no bairro carioca do Catumbi.
Para além do que foi dito, existem estudos acerca da influência da chibi – para-romani falado pelos calé brasileiros – no vocabulário português. Só para citar um exemplo, a palavra “geringonça” tem reconhecida origem cigana. Recentemente, a Revista de História da Biblioteca Nacional publicou um artigo comentando a possível influência calé no lundu, um conhecido ritmo afro-brasileiro. Trocando em miúdos, o elemento romani, ainda que pouco ou nada reconhecido, assim como o elemento árabe, judeu, etc., tem o seu quinhão de participação na formação desse balaio pluricultural que é a identidade brasileira.
Mas, novamente, é preciso atenção. O culto às entidades ciganas, no contexto da Umbanda, ainda que configure uma dissidência com particularidades próprias, é perfeitamente válido; da mesma maneira que o culto às entidades indígenas e às entidades afro-brasileiras também o são. Mas esse culto jamais, em tempo algum, deve ser confundido com uma prática religiosa romani, assim como o culto aos caboclos não é uma prática religiosa indígena e o culto aos pretos-velhos não é um traço característico das religiões tribais africanas.
Para ficar mais fácil de entender, digo que eu, como um rhom nascido no Brasil, tenho toda a liberdade de adotar a Umbanda como minha religião e, neste caso, cultuar entidades cuja origem supostamente remonta ao meu povo. O que nunca poderei fazer é dizer que o culto a essas entidades é algo tradicional, uma prática comum passada de geração a geração. Se eu fizesse isso, estaria sendo mentiroso e leviano.
É verdade que existe, nas tradições dos mais diversos grupos rhomá, uma profunda reverência aos mortos, um respeito muito sério à figura dos ancestrais. Existem mesmo alguns rituais, que podem variar bastante de grupo para grupo, realizados periodicamente em memória dos nossos familiares que se foram. Mas esses rituais em nada se parecem com o culto às entidades que se vê na Umbanda, não guardam absolutamente nenhuma semelhança.
Em primeiro lugar, dizer o nome dos mortos é um tabu. Evita-se ao máximo e, na impossibilidade de evitá-lo, certas palavras são ditas logo depois, para que não seja perturbada a alma do falecido. Em segundo lugar, não são montados altares para os mortos, com representações (imagens) em gesso ou qualquer outro material; tampouco se lhes oferecem frutas, como é o costume de quem normalmente cultua essas entidades. Por fim, não se deseja, espera e muito menos se busca uma manifestação física (incorporação). Na verdade, eu arriscaria dizer que se algo deste tipo acontecesse, provavelmente seria interpretado como um auspício negativo.
Entrar em detalhes sobre como seriam esses rituais foge ao propósito deste capítulo, e até mesmo deste trabalho. Importa, aqui, enfatizar que o culto a essas entidades existe, é muito bonito e, pessoalmente, não vejo nenhum problema com ele, mas se trata de um culto não-cigano a entidades ciganas. Não é algo típico das tradições rhomá.