De todos os estereótipos frequentemente relacionados aos rhomá, ser um povo místico, por assim dizer, talvez seja o mais famoso. E não sem motivo. Realmente, de maneira geral, pode-se dizer que os rhomá são um povo místico. Pode-se mesmo dizer que o universo espiritual ocupa parte significativa de nossas vidas e eu reconheço o quanto pode parecer contraditório o fato de um povo tão místico e propenso às coisas espirituais não ter, afinal, uma religião própria.
É preciso explicar, portanto, a diferença entre o papel que esse misticismo tem na vida rhom e a religião propriamente dita. Para a sociedade ocidental cristã, misticismo e religião são duas coisas intrínsecas, inerentes uma à outra. Para povos com um background cultural oriental, como os rhomá, a coisa pode funcionar diferente.
No curso de séculos, o povo rhom caminhou pelos mais diferentes lugares, desde a Índia. Alguns grupos fixaram-se permanentemente em alguns lugares. Outros permaneceram um tempo, para depois levantar acampamento e seguir viagem. Nessas idas e vindas, muito foi absorvido do contato com outros povos e outras culturas. Podemos dizer que a cultura cigana é, em si mesma, uma grande colcha de retalhos, releituras próprias de costumes, tradições e crenças dos lugares por onde andaram.
E podemos dizer mais, como houve várias dissidências no curso das ondas migratórias, e nem todos tomaram os mesmos caminhos, há mais de uma colcha, mais de uma cultura nessa complexa gama que constitui o universo romani.
Todas essas experiências configuram aprendizados e todo esse aprendizado é parte inseparável do tesouro cultural rhomá. Não é nenhum segredo o quanto os rhomá desprezam a maneira gadjé de construir conhecimento. Tradicionalmente, os meninos frequentam a escola apenas até terem aprendido as operações matemáticas básicas, porque elas serão úteis nas atividades comerciais. É como aprender a língua do seu cliente para se comunicar melhor, uma precaução para fazer bons negócios e não ser passado para trás. No fundo, a ciência gadjé não é valorizada no universo tradicional romani.
Se essa é uma característica boa ou não, eu acredito que depende, mas foge ao escopo deste trabalho julgar. Por agora, para fins didáticos, nos importa fazer a seguinte analogia – isto a que os gadjé chamam “misticismo” é, na verdade, um tipo de ciência para os rhomá. Esta é a comparação que costumo fazer para que as pessoas entendam nas palestras e, pelo que tenho observado, o resultado é satisfatório.
Você sabe, por exemplo, que se colocar uma chaleira d’água sobre o lume do fogão, dentro de algum tempo a água irá ferver. Da mesma maneira, uma rhomi (cigana) sabe que as linhas das mãos escondem certos segredos sobre a vida, o destino e a personalidade das pessoas, e que passar um galho verde em alguém, enquanto diz as palavras certas, funciona como um remédio para determinadas moléstias.
No seu caso, a ciência do seu povo explica porque a água ferve em contato com o lume do fogão (o que não significa que a explicação esteja certa, errada ou mesmo que seja a única). No caso da rhomi, a explicação sequer é importante; pode ser que nem exista uma, o fato é que funciona. Ela aprendeu isso com a mãe, que aprendeu com a avó, e assim por diante. Isso não tem a ver com religião, com a crença em algum deus ou coisa semelhante. É simplesmente um saber tradicional.
É exatamente por isso que – salvo no caso dos evangélicos, em que realmente há um tabu religioso de certas práticas, como a leitura da sorte – os rhomá, em geral, costumam conciliar muito bem as mais diversas religiões com este misticismo peculiar que lhes é inerente. Certos segredos simplesmente existem, fazem parte da vida e podem torná-la mais fácil. Não existe nenhum conflito nisso.
É claro que a rhomi, em dado momento, pode pedir ajuda ou intervenção dos santos, dos deuses, dos espíritos, etc., para ler a mão de alguém. Da mesma forma, um rhom pode pedir a proteção de São Jorge, ou de Ogum, ou de Shiva, antes de pegar o carro para ir trabalhar. Isso significa que o ato de dirigir, em si mesmo, é religioso? Claro que não, e o mesmo é válido para o ofício do gau, a leitura da sorte.
Existe a concepção de que todos os atos da vida comum, como limpar a casa, trabalhar ou comer, são sagrados, então a religião, seja ela qual for, pode ter parte neles, como um pedido de bênçãos. Isso não significa que os atos, em si mesmos, sejam religiosos. Ler a sorte, aliás, é tradicionalmente um ofício feminino dentro da comunidade rhomá e seu objetivo, como o de qualquer outro ofício, é complementar a renda da família.