Essa é a primeira coisa que precisamos ter em mente: não existe religião cigana!
Não existe um deus ou panteão de deuses ciganos, embora haja algumas denominações ciganas para alguns deuses não-ciganos. Como não existem deuses rhomá, também não existem cultos, e como não existem cultos, não existem sacerdotes ou sacerdotisas rhomá.
Para os rhomá, o divino, ou a divindade, está além da própria origem humana, portanto não depende de vínculos étnico-culturais para se manifestar. É exatamente por essa razão que consideram válida e digna de respeito toda e qualquer forma de religiosidade e fé.
De fato, os rhomá, no curso de sua história, desenvolveram o hábito de assumir, prontamente, a religião do lugar em que chegavam e no qual escolhiam permanecer. A volubilidade que parece transparecer nesse costume levou muitos pesquisadores a concluir que se tratava, na verdade, de mais uma estratégia de sobrevivência. A adesão às religiões gadjé, portanto, seria superficial e simulada, tendo por objetivo principal evitar conflitos, o que deixava subentendida a existência de uma religião própria, mantida no mais absoluto sigilo.
Nada mais longe da verdade. Esses pesquisadores sempre tiveram dificuldades de entender que os rhomá talvez tivessem pensado as “máscaras de Deus” muito antes de Joseph Campbell. Para eles, a coisa mais importante a se considerar sempre foi a presença do sagrado, reverenciá-lo de alguma forma, de maneira que o nome ou o método utilizado importavam muito pouco. Então, na grande maioria dos casos, a adesão à religiosidade local significava um sentimento sincero, e muitas vezes fervoroso.
Ninguém ousaria duvidar, por exemplo, da legitimidade dos Nawari em sua fé islâmica, ou da sinceridade dos calé, em Sevilha, no exercício de seu catolicismo um tanto exótico. A questão é que a adoção de uma religião, enquanto maneira de se conectar ao divino, diz respeito apenas ao crente e à sua divindade. O rhom, frequentemente, ignora as autoridades religiosas gadjé.
Também há que se observar que em todos os exemplos religiosos de que dispomos os rhomá possuem uma maneira própria de viver a religiosidade. Conheço rhomá das mais diversas religiões – católicos, muçulmanos, evangélicos, pagãos, espíritas, budistas, umbandistas, candomblecistas, satanistas e até ateus; todos sinceros na fé que abraçaram (sim, o ateísmo também é fé). Mas em todas essas denominações eles se distinguem de alguma forma, têm uma maneira muito própria, muito característica de vivenciar e experimentar o que acreditam e o que é importante em suas vidas.
No caso dos calé sevilhanos, é de se destacar a emoção especial com que se dedicam ao preparo das imagens dos santos por ocasião das festas e o fervor desinibido com o qual se entregam às procissões e atos solenes, completamente descomprometidos com o protocolo estabelecido e as autoridades religiosas locais. No caso daqueles que se converteram ao protestantismo cristão, para citar outro exemplo, merecem destaque os cultos realizados em romani, em que são aceitos apenas os membros da comunidade.
Muitos se questionam com relação à origem indiana, se não teria havido uma religião original, provavelmente uma forma de politeísmo hindu. Respondo que se os rhomá vieram da Índia, como as pesquisas mais recentes atestam, eles não levaram consigo a religião tradicional indiana, como seria de se esperar. É provável que o povo que deu origem aos rhomá tenha vindo de uma região entre a Índia e o Paquistão onde, à época, o masdeísmo (antiga religião duoteísta persa) era a religião dominante. Isso, sem dúvida, explicaria a presença de duas figuras divinas, em especial, no conjunto das crenças romani – Del ou Duvel e Beng. O primeiro, uma divindade criadora, associada a tudo o que é bom e justo. O segundo, por oposição, relacionado ao mal e à corrupção, ilustrando uma concepção cosmo-religiosa muito próxima à da filosofia masdáica.
Outros elementos presentes no universo espiritual romani, como a importância especial do fogo, também parecem apontar para uma influência determinante da religiosidade persa. Talvez pudéssemos conjecturar – e apenas conjecturar – que a primeira religião de fato a ser adotada pelos rhomá tenha sido o masdeísmo. O masdeísmo, por sua vez, também influenciou historicamente o cristianismo, impregnando-se em suas raízes. As similaridades entre as duas religiões, decorrentes dessa troca de influências, sem dúvida pode ter facilitado a aceitação dos rhomá quando estes se depararam com o cristianismo sob a bandeira do Império Bizantino. Fato é que quando chegaram à Europa, em fins do século XIV, eles já se diziam cristãos.